GUARAPUAVA; A expedição Real de 1809

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Introdução

Com a vinda da família Real Portuguesa ao Brasil em 1808, os campos descobertos nas expedições comandadas por Afonso Botelho e que há quase 40 anos tinham sidos abandonados, voltaram a ser tema de interesse.

Procurando incentivar o comercio estabelecido pelo tropeirismo,[1]“D. João VI expediu duas Cartas Regias ordenando a colonização definitiva dos Campos de Guarapuava”.[2]Na primeira Carta Regia endereçada a Antonio José da Franca e Horta, Governador e Capitão General da Província de São Paulo, datada de 5 de Novembro de 1808, o Príncipe D. João VI influenciado pelas pressões dos fazendeiros e tropeiros, declara guerra aos “bárbaros Índios”[3]de Guarapuava e manda colonizar os Campos:

“[...] logo desde o momento em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada a guerra contra estes bárbaros Índios: que deveis organizar em corpos aquelles Milicianos de Coritiba e do resto da Capitania de S. Paulo que voluntariamente quizerem armar-se contra elles, e com a menor despeza possível da minha Real Fazenda, perseguir os mesmos Índios infestadores do meu território; [...]Em segundo logar sou servido que à proporção que fordes libertando não só as estradas da Coritiba, mas os campos de Guarapuava, possais alli dar sesmarias proporcionaes às forças e cabedaes dos que assim as quizerem tomar com o simples ônus de as reduzir a cultura, particularmente de trigo e mais plantas cereaes, e de pastos para os gados, e da essencial cultura dos linhos cânhamos e outras espécies de linho”.[4]

Assim que recebeu a Carta Regia ordenando de “organizar em corpos aquelles Milicianos de Coritiba e do resto da Capitania”,[5]O Governador da Capitania de São Paulo tratou imediatamente em começar os trabalhos, os preparativos para tal expedição. Segundo Arthur Martins Franco, em Janeiro de 1809, o Governo Geral ordenava ao Governador da Capitania de São Paulo, Antonio José da Franca e Horta, “que constituísse a Nova Junta da Real Expedição de Guarapuava”.[6]

A esta Junta se confiava a tarefa de estabelecer o plano para a execução das medidas tendentes à organização e custeio da expedição. “Essa expedição era encarregada de realizar a efetiva ocupação daqueles campos e da catequese dos índios que os habitavam”.[7]

Não se pode afirmar com certeza o que aconteceu durante a preparação da expedição, o fato é que no referente aos índios a política do Governo Geral teve uma substancial mudança.[8]Não se declara mais “guerra aos bárbaros Índios” de Guarapuava. Segundo o Jurista curitibano Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo que mesmo não sendo historiador escreveu obras de historia, o que aconteceu é que na primeira Carta Regia o Governo Geral não consultou o Governo da Capitania de São Paulo antes de expedir a Carta.

Segundo o mesmo autor, a mudança se deve ao fato que o Governador da Capitania de São Paulo assim que recebeu a dita Carta Regia: “[...] sem tardança, antes que essa Carta Regia produzisse todos os seus maléficos efeitos, se apressa o governador em ir ao Rio para demonstrar a monstruosidade dessa resolução a Dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares [...], e sugerir-lhe a idéia de ser com urgência criada uma Junta especial, composta de deputados ilustres, práticos, justiceiros e conhecedores do grande problema, capazes de formular um plano para resolver, quanto possível sem guerra, captando quiçá, a simpatia dos selvagens.”[9]

Ainda segundo o mesmo autor, a idéia de formar uma Junta foi aceita e a “1° de Janeiro de 1809 foi criada a Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava da qual fizeram parte o Governador de São Paulo como presidente e como deputados os Coronéis João da Costa Ferreira e José Arouche Rondon”. Foi essa Junta que planejou a Real Expedição para a conquista dos Campos de Guarapuava.

Através da segunda Carta Regia de D. João VI de 1° de Abril de 1809 é possível inferir que realmente a Junta da Real expedição teve influencia na forma de conduzir a conquista:

“Sendo-me presente o vosso officio, e o da junta segundo as minhas reaes ordens convocastes para dar principio ao grande estabelecimento de povoar os Campos de Guarapuava, de civilizar os índios bárbaros, que infestam aquelle território, e de pộr em cultura todo o paiz que de uma parte vai confinar com o Paraná, e da outra forma as cabeceiras do Uruguay que, depois rega o paiz de Missões, e comunica assim com a Capitania do Rio Grande; e tendo em consideração tudo o que lhe expuseste e os votos dos Coronéis João da Costa Ferreira, e Joseph de Arroche Toledo Randon, que vos ordeno e a Junta sirvam de base o plano que deveis seguir e organisar as minhas paternaes vistas, e portanto considerando que não é conforme aos meus princípios religiosos, e políticos o querer estabelecer a minha autoridade nos Campos de Guarapuava, em território adjacente por meios de mortandades e crueldades contra os Índios, extirpando as suas raças, que antes desejo adiantar, por meio da religião e civilização.”

Além do supracitado, na Carta continha especificas instruções a respeito do tratamento que se deveria dar aos índios; cuidados com a segurança da tropa e pessoal da expedição contra possíveis ataques do «gentio»; da catequese deste e da instrução e proteção que lhes deviam ser dadas; da fundação de povoados e de seus logradouros e da abertura de uma estrada que comunicasse mais facilmente com a Capitania do Rio Grande do Sul “pelos campos que vertem para o Uruguay e passão perto do Paiz de missiones”.

É importante registrar que não obstante a mudança na forma de tratamento e pacificação com os índios, a Carta Regia não descartava a guerra, mas somente depois de esgotadas as possibilidades de tratamento pacífico. Além disso, justificava ou deixava brechas para a escravidão dos indígenas:

“Ao mesmo Commandante ordenareis que quando seja obrigado a declarar a guerra aos índios, que então proceda a fazer e deixar fazer prisioneiros de guerra pelas bandeiras que elle primeiro autorisar a entrar nos campos [...], bem entendido que esta prisão ou captiveiro so durarà 15 annos contados desde o dia em que forem baptisados e desse acto religioso que se praticarà na primeira freguezia por onde passarem se lhes darà certidão na qual se declare isso mesmo exceptuando porém os prisioneiros homens e mulheres de menor idade pois que nesses o captiveiro dos 15 annos se contarà ou principiarà a correr aos homens da idade de 14 annos, e nas mulheres de 12 annos [...], bem entendido que os serviços do índio prisioneiro de guerra poderão vender-se de uns a outros proprietários pelo espaço de tempo que haja de durar o seu captiveiro, segundo mostrar a certidão que sempre o deve acompanhar.”

Ainda na mesma Carta o Príncipe ordenava a cobrança de um novo tributo para arrecadar fundos para a manutenção da expedição. Para os que quisessem povoar as terras de Guarapuava se fazia uma serie de incentivos como a extinção de tributos por um determinado tempo. É importante ver literalmente como reza a referida Carta no tocante. Apesar de ser um pouco longa a citação, é importante para o desenvolvimento da Real Expedição.

“[...] sou servido ordenar-vos que prescreveis no meu real nome, ao Comandante que segundo vossa proposta tive por bem nomear para dirigir esta expedição que nos primeiros encontros que tiver com os bugres, ou outros quaisquer índios faça toda a diligencia para aprisionar alguns, os quaes tratará bem, e vestirà de camisas e outro vestuário, e fazendo-lhes persuadir pelos línguas que se lhes não quer fazer mal, e antes se deseja viver em paz com elles e defendel-os de seus inimigos que então os largue e deixe ir livres para que vão dizer isso mesmo aos índios da sua espécie com quem vivem [...], que ao mesmo comandante seja muito recomendado o vigiar que a sua tropa não tenha comunicação com as índias, nem saiam de noite fora do recinto, castigando severamente todos os que desobedecerem estas minhas reaes ordens, e vierem assim a serem causa de desordens, e desgraças; tendo o Comandante sempre presente que deve tratar os índios como filhos a respeito do castigo que merecerem, porém não se fiando nunca, nem descuidando, visto que a experiência tem mostrado que os povos bárbaros, ou por um mal entendido, ou por qualquer accidente cahem em actos de violência não esperados, e levam então sem motivo a sua crueldade e vingança a um ponto superior a toda a expectação[...]; sou servido ordenar, que pelo espaço de 10 annos se cobre no Registro de Sorocaba um novo tributo de 200 réis nos primeiros cinco annos sobre toda a cabeça de gado vaccum e cavallar que passar pelo mesmo Registro, vindo do districto de Itapetininga inclusive para o Sul, e findos os primeiros cinco annos, de 100 réis, que continuará assim só por metade nos últimos cinco annos, a qual será applicada pura e simplesmente à nova expedição que tenho ordenado, e para esse fim ordenareis à nova Junta de Guarapuava de que vos creei Presidente, para que ella proceda a fazer a devida applicaçao para as sobreditas despesas.”

Para comandar a Real Expedição foi escolhido um homem de confiança do Governador de São Paulo, Sargento-Mόr do Regimento de Cavalaria de Curitiba, Diogo Pinto de Azevedo Portugal. Na mesma Carta Regia (1° de Abril de 1809), além da nomeação para Comandante, o Sargento foi promovido a Tenente Coronel. Foi este homem o grande responsável pela execução dos planos da Junta da Expedição de Guarapuava. A ele coube levar a cabo todas as determinações da Carta Regia de 1° de Abril de 1809 e as demais determinações que vieram através da Junta da Expedição de Guarapuava.

Assim que a Junta recebeu a Carta Regia de 1° de Abril tratou imediatamente de prover os diversos cargos que se relacionavam com o serviço da Expedição. Eram cargos importantes como o de Administrador e Recebedor do novo tributo imposto no Registro de Sorocaba; o cargo de Assentista Geral da Expedição além dos militares responsáveis pelo recrutamento dos soldados que formaram a Expedição.

Entre esses soldados deveria ter especialistas em lavrar a terra e serrar madeira; outro cargo importante era o de Almoxarife Tesoureiro e Pagador Geral da Expedição; enfim, todos os auxiliares de Diogo Pinto no Comando da Expedição. Além dos militares que chegou ao número de 200, a Expedição contou com mais 100 pessoas, formadas de famílias inteiras que voluntariamente se dispunham a correr o risco para tentar uma vida melhor nos Campos de Guarapuava.

É importante ressaltar que as pessoas que compunham a Expedição não eram somente pessoas bem vistas na sociedade. Na mesma Carta Regia de 1° de Abril se ordena “remetter para os Campos de Guarapuava todos os criminosos e criminosas que forem sentenciados a degredo, cumprindo alli todo o tempo do seu degredo” Assim, a Expedição era formada de militares, famílias voluntárias, homens recrutados forçadamente e criminosos. Não existe registro preciso do total de pessoas que formaram a Expedição, o que se sabe que ultrapassa a casa de 300 pessoas.

Entre as pessoas importantes da Expedição estava sem duvidas o Padre Francisco das Chagas Lima. Arthur Martins Franco relatando a composição da Expedição assim se refere ao padre: “1° Capelão – Padre Francisco das Chagas Lima, com a côngrua de 10$000 por mês pagos pelo cofre de rendimento estabelecido para a Real Expedição, desde o dia que para ella marchar”.

Depois de organizada e vencidos os primeiros obstáculos, a Expedição partiu de Curitiba no dia 1° de Agosto de 1809, chegando aos Campos de Guarapuava em 17 de Junho de 1810 (dia da Santíssima Trindade). O Padre Chagas em sua memória sobre o descobrimento e colonização de Guarapuava de 1828 resume a trajetória da Expedição:

“Partiu com efeito a expedição, e no 1° de Agosto se achou reunida na estrada do mato, além do qual fica o campo, e n’esse logar esteve acampada dois mezes. Depois passou para São Philippe, varando o mato, aonde se demorou 4 mezes, d’ahi seguiu a Linhares, à margem do Embetuba, aonde residiu 6 mezes, explorando-se n’esse tempo o caminho que deviam tomar no resto do espesso bosque.

Por este tempo se recolheu ao seu mosteiro o Missionário Benedictino. Reconhecido e aberto o caminho, marchou a expedição a 10 de Junho de 1810, e sem opposiçao do gentio chegou aos campos no dia 17 do dito mez, às 10 horas da manhãa (dia da SS. Trindade). Passou-se immediatamente a fazer um reconhecimento, depois que debaixo de uma tolda, o Missionário celebrou missa cantada, dando se o nome da commemoraçao do dia aos ditos campos.

Levou oito dias o reconhecimento, e se fez até a distancia de 10 leguas, e não se tendo encontrado habitante, passou-se a fundar, da parte do além do rio Coutinho, a povoação da Atalaya, nome que proveio de se ter erigido a primeira obra d’esta qualidade, com a elevação de 40 palmos, sobre quatro esteios, de onde a sentinella podia ver grande extençao do campo.”


NOTAS

BIBLIOGRAFÍA

ISIDORO SIMÕES J., Collecção das Leis do Brazil de 1808, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro 1891

MARTINS FRANCO A., Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava, Ed. Muséu Paranaense, Curitiba, 1943

TADEU MOTA L., As Guerras dos Indios Kaingang. (1769-1924). UDUEM, 1994.

TAKATUZI T., Águas Batismais e Santos Óleos; uma trajetória histórica do Aldeamento de. Atalaia. UNICAMP, 2005


ANTONIO AILSON AURELIO

  1. Chamamos de tropeirismo o grande comercio de animais (gado e muares) entre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Para fazer tal comercio, os tropeiros gaúchos precisavam passar pelo chamado caminho ou estrada do Viamão. Muitos colonos portugueses se estabeleceram às margens desse caminho em enormes fazendas, até então não controladas pelo governo. Esse caminho atravessava os sertões e havia muitos conflitos entre fazendeiros e indígenas nessas imediações, o que atrapalhava o comercio, pois dificultava a passagem dos tropeiros. Por isso, muitos desses fazendeiros por interesse em expandir suas posses e criações de gado pediam ao Governo até o extermínio dos índios. Para aprofundamento sobre os conflitos entre fazendeiros, tropeiros e indígenas no Paraná, cf. L.TADEU MOTA, As Guerras dos Indios Kaingang,1994.
  2. T. TAKATUZI, Águas Batismais e Santos Óleos, 29.
  3. Carta Regia de 5 De Novembro de 1808, in J. ISIDORO SIMÕES, Collecção das Leis do Brazil de 1808, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro 1891, 156.
  4. Ibidem, 156-169.
  5. Ibidem, 156.
  6. A. MARTINS FRANCO, Diogo Pinto e a Conquista de Guarapuava, 59.
  7. Ibidem, 59-60.
  8. Para um aprofundamento sobre a legislação e política indigenista no século XIX no Brasil, cf. M. CARNEIRO DA CUNHA, Legislação indigenista no século XIX: uma compilação (1808-1889), EDUSP,São Paulo 1992.
  9. F. R. AZEVEDO MACEDO, Conquista Pacifica de Guarapuava, Farol do Saber, Curitiba 1995, 102.