FILHAS DA CARIDADE

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Congregação religiosa feminina fundada na França, começou a ganhar consistência em Paris a partir de 1623, graças ao carisma de Luisa de Marillac (1591-1660), viúva de Antoine Le Gras, que organizou pequenas confrarias de mulheres que iam às casas dos doentes prestar-lhes assistência. Foi então que São Vicente de Paulo (1581-1660), aos 29 de novembro de 1633, propôs de agrupar ditas confrarias para dar-lhes maior eficiência. A inciativa vingou e dai surgiu uma nova associação de religiosas, popularmente conhecidas como “Vicentinas”.[1]

Também no Brasil o pioneirismo das Filhas da Caridade se fez sentir pois foram elas as primeiras religiosas de vida ativa a se estabelecerem no país, coisa que aconteceu ainda na primeira década do Segundo Império. As irmãs vieram graças à iniciativa de Dom Antônio Ferreira Viçoso (1787-1875), bispo de Mariana, MG, quem encarregou o Pe. Cunha de conseguir em Paris algumas delas para a sua diocese. Antes de partir o padre fez uma verdadeira peregrinação pelo interior de Minas para juntar dinheiro suficiente para pagar as passagens das eventuais irmãs.[2]Chegando à capital francesa no dia 12 de junho de 1848, o padre apresentou o pedido ao Superior geral dos lazaristas, Pe. Jean-Baptitiste Etienne, que acatou a solicitação, enviando às irmãs uma mensagem tocante: “Parti, minhas irmãs, parti! Levai numa das mãos o archote da fé e na outra, a chama da caridade!”[3]

As doze designadas, tendo a irmã Virginie Marguerite Dubost como responsável do grupo, embarcaram no veleiro Etoile du Matin no porto de Havre aos 28 de novembro de 1848. Uma delas, a Irmã Charpentier perdeu a razão e teve de ser substituída. Assim, o grupo definitivo ficou constituído pelas irmãs Dubost, Odet, Lézat, Laveissière, Rigail, Rouy, Martinier, Lenormand, Chazet, Mass, Millet e Bonnardet. Junto delas, além do Pe. Cunha, embarcou também um novo grupo de lazaristas, e, depois de mais de dois meses de fatigosa travessia, numa manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro do ano seguinte, adentraram na baía de Guanabara.

As Filhas da Caridade permaneceram hóspedes no Convento da Guia das irmãs franciscanas de clausura até 26 de fevereiro, sendo depois transferidas para a fazenda do Sr. Lacerda, correspondente de Dom Viçoso no Rio, e encarregado de providenciar-lhes o necessário.[4]Isto posto, no dia 11 de março seguinte, iniciaram no lombo de burros a última etapa da viagem. Aos 3 de abril de 1849, chegaram à destinação, sendo acolhidas por Dom Viçoso, e instaladas na humilde Casa da Providência, próxima à igreja do Carmo.[5]

A obra sucessiva das Filhas da Caridade, que além de pioneiras se tornariam a maior e mais importante congregação religiosa feminina do Brasil imperial, se desenvolveu por várias etapas. Pouco depois de instaladas, transformaram a Casa da Providência num pequeno pensionato para formação de moças, e, aos 10 de março de 1850, abriram o Colégio Providência, um dos primeiros educandários femininos de Minas Gerais, seguido de outras obras como creche, lactário e dispensário. O sucesso das irmãs nas áreas da educação e da saúde acabou tendo repercussão junto à Corte e Dom Pedro II convidou-as para fundarem um estabelecimento de ensino no Rio. Elas foram, e lá abriram outro educandário de nome Imaculada Conceição, ao lado do qual, instituíram também um orfanato para crianças e jovens carentes, bem como outras obras sociais.

Um fato novo as forçaria a atuarem noutra frente de assistência: os menores negros. Isso foi conseqüência da lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871 (“Lei do ventre livre”), que assegurou a liberdade dos negros nascidos de 1872 em diante. A questão é que a referida lei também dispunha que estas crianças permaneceriam em poder e sob a autoridade dos senhores e de suas mães nos primeiros oito anos de vida, depois do que seria consentido aos patrões de se servirem da sua mão de obra até que atingissem a idade de 21 anos, como forma de “compensação”, caso não fossem indenizados pelo Estado. O Estado, obviamente, esqueceu-se deste último particular, e a maioria dos meninos fugia para as cidades, onde facilmente caíam na mendicância ou na delinqüência juvenil. As irmãs, por si só, não poderiam resolver um problema nacional, mas a elas cabe o mérito de terem sido uma das poucas instituições do país a abrir um orfanato somente para os menores negros abandonados.[6]

Iniciativas novas viriam, até porque, com seu pragmatismo em matéria de religião, Dom Pedro II percebeu o potencial das “Vicentinas”. Por isso, em 1852, desejando melhorar o atendimento da Santa Casa do Rio de Janeiro, ele mandou chamar de Mariana o Pe. Pierre Monteil, e o enviou a Paris para obter do superior geral, Pe. Jean-Baptiste Étienne, mais irmãs, tanto para trabalharem ali como no Asilo dos Alienados. O enviado conseguiu realizar o intento do Soberano, pois retornou trazendo nada mais nada menos que 30 religiosas. Pe. Monteil, vitimado pela febre amarela, faleceu no dia 27 de novembro daquele mesmo ano, mas o trabalho das Filhas da Caridade continuaria sua marcha. Não se passara ainda nem um ano, e durante o mês de agosto desembarcou na Bahia um novo grupo de 34 religiosas. Destas, 11 permaneceram em Salvador, atendendo insistente pedido de Dom Romualdo Seixas, enquanto que as demais prosseguiram viagem rumo ao Rio de Janeiro.

No ano de 1854 acolheriam a primeira vocacionada, conhecida depois como Irmã Lacerda. E, a expansão pelo Brasil continuou: em 1856 as irmãs foram cuidar do hospital de Nossa Senhora do Desterro, SC, onde permaneceriam até 1864; e em abril de 1857, atendendo pedido do Presidente da Província e do próprio Imperador, ficaram encarregadas da direção do Hospital Pedro II do Pernambuco.[7]

Passados apenas nove anos (1849 – 1858), as Filhas da Caridade já possuíam 17 casas, em cinco províncias: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Santa Catarina e Pernambuco. E, a expansão prosseguiu: em 1858 assumiram a direção do Colégio de Santa Teresa em Olinda, e, no ano de 1865 fundariam o Colégio do Imaculado Coração de Maria de Fortaleza, ao que se seguiu, em 1868, o Colégio Santa Isabel, de Petrópolis.[8]As vocações nativas também despontaram, e como a inteira obra não parava de crescer, aos 22 de agosto de 1860, foi constituída a sua primeira província no Brasil, com sede no Colégio da Providência, no Rio.[9]

De outra feita, um desenvolvimento tão vistoso, suscitou a oposição de políticos e de remanescentes clérigos regalistas. No primeiro caso, vale lembrar que, em 1858, o inspetor geral da Instrução Pública de São Paulo, Diogo de Mendonça Pinto, criticou o estabelecimento das congregações religiosas européias no Brasil, com uma alegação patética para um país de analfabetos: “Podem estar porventura tão amortecidos os brios do nacionalismo para que venham missionárias da Europa pregar aos brasileiros?”[10]

Arengas assim faziam parte da retórica de vários outros políticos, a exemplo do deputado Pedro Luiz Pereira de Souza (1839-1884) que, em meio a arroubos retóricos, vociferou no ano de 1864: “As irmãs de caridade têm grandes estabelecimentos à sua disposição: hospitais e colégios. Nos hospitais são enfermeiras tirânicas e administradoras absolutas. [...] Combato o jesuitismo, meus senhores, apareça como aparecer; combato o jesuitismo, venha ele com o burel do capuchinho, ou com a batina do lazarista ou com a touca branca da irmã de caridade”.[11]

No tocante aos religiosos regalistas, se destacou Joaquim do Monte Carmelo, que em 1873 proferiu um verdadeiro libelo contra as “Vicentinas”: “Enquanto sofrem as nossas míseras patrícias, folgam as beneméritas Irmãs de Caridade (o grifo é do autor), que aqui chegam aos bandos, sem que ninguém lhes saiba a procedência. Elas monopolizam o ensino das nossas mães de família, sem que lhes exija provas das habilitações que trazem para o magistério! Vivem em comunidades sujeitas a superiores estrangeiros, contra a doutrina do Aviso de 3 de julho de 1828. Admitem finalmente à profissão de seus estatutos quantas brasileiras podem angariar (idem), sem que ninguém possa dizer-lhes: alto lá!”[12]

Dom Pedro II ignorou esses ataques verbais ainda que, fiel ao seu estilo, viesse a afirmar que as Filhas da Caridade eram excelentes “nos ofícios próprios do seu nome”, mas que se deviam “cortar sua tendência a estender sua influência além desses limites”. E, mesmo não tomando nenhuma medida contra a congregação, ele chegou a cogitar para as irmãs uma direção exclusivamente brasileira, independente da matriz francesa.[13]

A proclamação da república em 1889, mais a laicização do estado no ano seguinte não prejudicou a ação das “Vicentinas”. Aquele era o período da Belle Époque e, o estilo pedagógico adotado pelas congregações de origem francesa correspondia a um modelo tido como ideal para as moças de “boa família”, formadas como eram para serem boas donas de casa, manejando com arte bordados e pianos. Como já se disse, “o ensino francês foi o ingrediente básico para formar sem defeitos – ou pelo menos sem maiores riscos para o resultado final – a receita de uma formação escolar que homogeneizava condutas, conferia distinção social e estatuto social de educadas, prendadas e virtuosas às jovens então egressas”.[14]Um modelo que, no âmbito eclesial, resistiu até a segunda metade do século XX e que viria a passar por revisões profundas apenas após o Vaticano II.

Notas

  1. SERVILIO CONTI, O Santo do dia, 3 ed., Editora Vozes, Petrópolis 1986, p. 424.
  2. A. I., Uma longa e edificante viagem, p. 59.
  3. MARIA AMÉLIA FERREIRA RIBEIRO ET ALII, 150 anos de presença das Filhas da caridade de São Vicente de Paulo no Brasil, pp. 24 – 25.
  4. MARIA AMÉLIA FERREIRA RIBEIRO ET ALII, o. c., pp. 26 – 27.
  5. EPONINA DA CONCEIÇÃO PEREIRA, “Commemorazione del 150.º anniversario dell’arrivo delle Figlie della Carità in Brasile”, em: Echi della Compagnia, n.º 6, pp. 227 – 231.
  6. MARIA AMÉLIA FERREIRA RIBEIRO ET ALII, 150 anos de presença das Filhas da caridade de São Vicente de Paulo no Brasil, pp. 29 – 30.
  7. JOSÉ TOBIAS ZICO, Congregação da Missão no Brasil, Lithera Maciel Editora Gráfica, Belo Horizonte 2000, p. 63, 65, 70 – 71.
  8. LAÉRCIO DIAS DE MOURA, A educação católica no Brasil, Edições Loyola, São Paulo 2000, p. 88 – 89.
  9. MARIA AMÉLIA FERREIRA RIBEIRO ET ALII, 150 anos de presença das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo no Brasil., Artes Gráficas Formato, Belo Horizonte 1999, p. 32.
  10. JANE SOARES DE ALMEIDA, Ler as letras: por que educar meninas e mulheres?, Auutores Associados, Campinas 2007, p. 104.
  11. PEDRO LUIZ PEREIRA DE SOUZA – JOAQUIM MANOEL DE MACEDO, Questão Janrad. Tipografia do Jornal de Recife, Recife 1864, p. 12, 16.
  12. [JOAQUIM DO MONTE CARMELO], O Arcipreste da Sé de São Paulo Joaquim Anselmo de Oliveira e o clero do Brasil, (editora não citada) Rio de Janeiro 1873, p. 230.
  13. HEITOR LYRA, História de Dom Pedro II, vol. II, Companhia Editora Nacional, São Paulo 1939, p. 355.
  14. CLÉRIA BOTELHO DA COSTA ET ALII, Imaginário e História, Marco Zero, São Paulo 1999, p. 148.


DILERMANDO RAMOS VIEIRA