TRÁFICO ESCRAVO; O fenômeno em Brasil

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Escravos Africanos, no século XIX

O tema da escravidão é muito polêmico e, muitas vezes, foi assunto de exploração ideológica. A escravidão de modo geral é um fenômeno antiqüíssimo. A pessoa escravizada era reduzida a um «res» (=coisa) e «podia»ser vendida, alugada, penhorada, etc. Já em meados do século XV haviam escravos negros em Portugal. Em 1551, 10% dos habitantes de Lisboa eram escravos e ocupavam-se nas mais diversas tarefas.

No Brasil a entrada dos escravos associava-se inicialmente à plantação da cana-de-açúcar, após o fracasso do uso do braço indígena. O sistema capitalista mercantil admitia como «natural e indispensável» a escravização de «raças inferiores».

Os negros pertenciam às mais variadas etnias, oriundos, sobretudo da Costa do Ouro, do Golfo da Guiné, Rio Congo, Angola e Moçambique. Da praça de São Paulo de Luanda é que eram embarcados mais escravos para o Brasil. Os cativos eram obtidos na África em troca de mercadorias: aguardente, fumo, algodão, armas. Nos navios negreiros ou tumbeiros, come eram chamados, viajavam de 35 a 70 dias de Angola a Pernambuco, Bahia ou Rio de Janeiro. O índice de mortalidade dos negros na longa travessia do Atlântico chegava a 25% dos passageiros.

Morriam, sobretudo, em decorrência de diarréia e escorbuto. Diz-se que cerca de 400 mil negros saídos da África nunca chegaram ao Brasil. Nos portos de desembarque eram postos à venda. Os interessados podiam apalpar os corpos dos negros e manipular seus membros, como se fossem gado, num atentado indizível contra a dignidade do africano.

“O interessado apalpava os músculos, levantava os lábios para verificar o estado dos dentes, batia-lhes nas pernas, fazia-os sentar, virar-se, dançar. Se se tratava de mulher, os seios eram bem examinados, pois poderia via a servir de ama-de-leite, e bem assim as nádegas. Tinha-se interesse em negra de traseiro grande, bem servido de carne, porque isso - diziam - era indício de força, saúde e qualidade de boa parideira, capaz de dar novos escravos ao senhor. Era um atentado indizível contra a dignidade do africano”.[1]

Os que buscavam justificar a escravidão apresentavam, entre outras, as seguintes razões de ordem teológica: 1) "O justo cativeiro de africanos, é conseqüência do pecado originar (Pe. Jorge Bensi, SJ, +1708); 2) Os negros são descendentes de Caim, assassino de Abel. Caim teria ficado com a pele negra como sinal de maldição divina; 3) Os negros pertenceriam à raça maldita de Cam (Gn 9,18-27), filho de Noé, que viu a nudez do seu pai e riu dele; 4) A escravidão seria, ainda, uma libertação espiritual para os negros que, passando da África ao Brasil, estariam passando do reino das Trevas para o reino da Luz (Pe. Antônio Vieira).

A Igreja oficial mostrava-se paradoxal na consideração da escravidão. Por um lado vários Papas sancionaram o «resgate» de negros pagaos, como era chamada a escravidão pela Igreja. Por outro lado houve Papas que denunciaram o erro da escravidão, mas não foram ouvidos. O Pe. Gonçalo Leite (+1603), jesuíta, denunciou a escravidão de negros na própria Companhia de Jesus, e foi convidado a voltar para o Reino, em 1586. O Pe. Miguel Garcia, SJ, se opôs tenazmente à escravidão de negros na mesma Companhia e se recusava confessar os defensores do cativeiro, mesmo se fossem padres. Também foi mandado de volta à Europa.

O primeiro brado abolicionista no Brasil veio do Pe. Manuel Ribeiro da Rocha, em 1758, quando publicou um livrinho intitulado «Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado», defendendo que os escravos pudessem - com o seu serviço - comprar a liberdade, ressarcindo as despesas feitas pelos senhores na sua aquisição. Também não foi ouvido.

Dentre o clero brasileiro não faltou também quem defendesse peremptoriamente a suposta legitimidade da escravidão. Assim foi que o bispo do Pernambuco, Dom José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742-1821), escreveu duas obras para tentar fazer prevalecer a escravatura no Brasil. Em 1798, publicou, em francês, a obra «Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da Costa de Africa» e, em 1808, publicou também a «Concordância das Leis de Portugal e das Bulas Pontificias, das quais umas permitem a escravidão dos Pretos de África, e outras proíbem a escravidão dos índios do Brasil». Na carta que Azeredo Coutinho apresentava aquela sua primeira obra à D. Maria I, rainha de Portugal, pedindo para imprimi-la, ele assim se expressava:

“Senhora.

Diz o Bispo de Pernambuco que tendo-se espalhado por toda a parte a pernicioza doutrina de hua Liberdade sem Lemites, que não só tem perturbado a tranqüilidade temporal dos homens; mas também a moral, chegando até o ponto de atacar a justissa do Comercio do resgate dos escravos da costa da Africa, justissa que Senão pode atacar sem ao mesmo tempo atacar a justissa das Leis deste Reino que estabelecerão o dito comercio, se faz precizo destruir esta errada doctrina pelo estabelecimento dos verdadeiros princípios em que se funda a justiça das Leis e do dito Comercio: a falta do verdadeiro conhecimento destes princípios vai já produzindo males que poderão ter conseqüências terríveis não só para o Brazil, mas também para todo este Reino, pois q' já na Bahia alguns Confessores tem negado absolvição aos seus penitentes, que comprao e vendem escravos como fundamento de ser aquele comercio contrario ao direito natural; doutrina que ali espalhou hum Religiozo Barbadinho, que veio remetido preso daquela Cidade ao Ministro do Estado, que então era Martinho de Melo e Castro para o aprezentar a Vossa Magestade.

O Suplicante querendo evitar que esta peste se comunique ao seu Rebanho fez a Analyse incluza em que Se persuade ter mostrado não só a justiça daquele comercio, mas também o quando são falsos e absurdos os princípios contrários; e como para fazer imprimir a dita Analyse precisa de licensa de Vossa Mage. P. a Vossa Mage. Se digne mandar que qualquer impressor a quem ela for aprezentada a faça imprimir ficando-lhe o original para a todo o tempo constar da Licença. E.R.M.”[2]

O número de negros transportado à América é incerto. Fala-se de 11 a 12 milhões. Destes, 4.500.000 se destinavam ao Brasil. O Rio de Janeiro e a Bahia (Salvador) receberam, respectivamente, de 35 e 25% desse total. Em 1818, a população do Brasil era de 1.884.900 livres e de 1.930.000 escravos negros.

O preço de um escravo era elevado de acordo com a idade, o sexo e a robustez. Um homem valia mais do que uma mulher, e os mais jovens mais do que os mais velhos. No decurso de 300 anos o número de mortes entre negros era superior a nascimentos. Daí a necessidade de se importar «novas peças». Da África vinham mais homens do que mulheres. A vida útil de um escravo dificilmente ultrapassava os 20 anos.

No século 16 o destino da maioria dos escravos eram os engenhos de cana-de-açucar do Nordeste; no século 18, as minas de ouro de Minas Gerais; e, no século 19, as lavouras de café nas fazendas do Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1776 a população da Capitania de Minas Gerais era de 319.769 pessoas, das quais 249.105 eram escravas.

A escravidão no Brasil nunca foi branda e o mito da bondade dos fazendeiros não passa de produto da própria estrutura escravista. Um fato singular que ilustra essa afirmação, foi a viagem empreendida por um escravo, da Bahia à Roma, logicamente auxiliado pelo então arcebispo baiano, para entregar uma carta ao Papa, em nome de diversas irmandades negras daquela capital, pedindo-lhe auxílio para aliviar a triste situação em que se encontravam os escravos. O documento que certifica a saída desse escravo de Salvador, o encontramos no Arquivo Histórico de «Propaganda Fide» e, dada a sua importância histórica, o itranscrevemos integralmente, como se segue, respeitando a sua ortografia original:

“Francisco da Fonseca escrivam do iuizo do senhor arcebispo da santa se desta cidade da Bahia do reino do Brasil da America, i publico nas couzas delia por provizam de Sua Alteza q. Ds. Guarde.

Sirtifíco e dou minha fe em como parte desta dita cidade Paschoal Dias negro foro, com procurasam da menza dos negros de nosa senhora do rozario da comfraria de nosa senhora do desterro, com procurasam da confraria de nosa senhora do rosário que esta em Sam Pedro dos pretos, com procurasam da confraria de nosa Senhora do Rosário da igreia de nosa senhora da Conseiçam, com outra procuraçam de duas com frarias que estam em Sam Benedito, com otra procurasam da comfraria de nosa Senhora do Rosário que esta na ce catredal, as quais por todas Sam seis, cui ali por depacho de huma pitiçam que todas esta com frarias tiveram do senhor arcebispo dom Joam o qual mandou paçar esta cirtidam, dando as sobre ditas confrarias poder e aturidade a Paschoal Dias negro foro, para que venha a Curia Romana botarce aos pés en nome de todos a Sua Santidade con huma pitiçam dizendo-lhe o mizeravel estado em que estam todos os negros cristam desta e de todas as mais cidades deste Reino da America, e os grandes trabalhos que paçam sendo filhos da Igreia, e como constava de todas as procuraçois das Comfrarias, a que me reporto en tudo feita e asinada por mim iscrivam, e sellada com o cello deste juízo. Bahia, 2 de iulho de 1686. + Francisco da Fonseca”.[3]

Os castigos para manter os negros sob controle eram constantes. Nos pelourinhos, colocados nas praças, os negros eram amarrados em argolas e castigados. Havia diversos modos de flagelação dos negros. Os escravos fugitivos eram marcados a ferro quente com a letra "F". Os reincidentes tinham a orelha cortada e às vezes se cortava até mesmo o tendão de Aquiles dos negros para impedi-los de correr, mas não de trabalhar.

A catequese do escravo era confiada aos seus próprios donos, pelas «Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia», de 1707. Essas Constituições deram significativa atenção aos escravos e exigiram dos senhores que, “pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo” tratassem melhor os seus escravos, dando-lhes descanso dominical e outros cuidados.

No período colonial a Igreja fez esforços louváveis para aproximar-se do negro. Entre os jesuítas haviam missionários negros, vindos da África, ou brancos que aprenderam a língua de Angola e que muito fizeram pela catequese do negro no Brasil. Exemplos: Pe. Pedro Dias (+1700), jesuíta angolano, de Luanda.

O batismo dava certo «status» ao negro, que passava de «pagão» a «cristão». Em 1756, a administração colonial exigiu capelão nos navios para batizar os negros antes do embarque. O casamento regular entre os escravos eram quase exceção. Os senhores preferiam a livre reprodução deles. Não obstante, as «Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia» pediam que se casassem cristãmente, o que nem sempre era obedecido.

Sabe-se que os próprios Padres e Religiosos possuíam muitos escravos. Até mesmo bispados, paróquias e santuários os tinham para o serviço. Mas as Ordens Religiosas eram as que, na Igreja, mais tinham escravos em suas fazendas. O escravo nunca aceitou pacificamente a sua situação. A resistência interna foi permanente. Não poucos se suicidaram já nos navios, saltando ao mar. Muito difundido era o banzo, uma espécie de tristeza pela saudade da África, que os tornavam abatidos, deprimidos e os levavam à loucura.

O inconformismo assumia às vezes revoltas organizadas: os quilombos. Palmares foi o mais famoso dos quilombos do Brasil e durou de 1600 a 1694. Situava-se no Estado de Alagoas e o seu líder maior foi Zumbi. Em 1678, a população do Quilombo de Palmares era de cerca de 200 mil habitantes. O famoso jesuíta Pe. Antônio Vieira se recusou a dar assistência religiosa aos palmarinos, por considerá-los rebeldes. Esse Quilombo foi destruído em 1694, pelos bandeirantes paulistas, entre eles, Domingos Jorge Velho.

Mas o descontentamento dos cativos com a sua condição se expressava também por outros atos de revoltas, menos duradouros. Por exemplo, o «Levante dos Males», na Bahia, em 1835, feito por escravos muçulmanos letrados. Foi reprimido duramente. Só na Bahia, de 1807 a 1835, foram 11 os motins de escravos de grandes proporções.

Também na Freguesia de Carrancas, no atual município de São Tomé das Letras, Sul de Minas Gerais, houve uma revolta de escravos, em 1833, que passou para a história com o nome de «Levante da Bela Cruz», quando nove pessoas da Família Junqueira foram mortas. As fugas aconteciam em massa e os atentados contra os patrões trouxeram medo generalizado à sociedade oitocentista. Nos meados do século XIX foram muitas as revoltas e assassinatos de patrões por parte dos escravos.

No Segundo Reinado (1840-1889), o capitalismo entra em nova fase, enquanto idéias humanitárias ganham espaço. O trabalho servil é questionado. A escravidão começa a ser encarada como economicamente desvantajosa ao país, impedindo a modernização do Brasil. Mantendo a escravidão, o país se isolaria do resto do mundo. O tímido progresso da industrialização brasileira foi outro fator de enfraquecimento do regime.

Só com a introdução de mão-de-obra assalariada o país avançaria economicamente. Estimula-se, doravante, a imigração estrangeira e, com ela, a ideologia do «embranquecimento» da população. A política imigratória visava uma europeização do Brasil. «Raças inferiores» deveriam ser substituídas por «raças superiores» dos brancos. Ilusão que a própria história desmentiria.

Outro fator que não pode passar esquecido quanto à causa da emancipação dos escravos é que, sendo sido abolida a escravatura nas Antilhas Inglesas, a produção açucareira da Inglaterra corria risco se tivesse de concorrer com países onde havia braço escravo. Daí a pressão inglesa para que se abolisse o regime escravocrata no Brasil. Havia também o caráter humanista de grupos da Grã-Bretanha que viam a escravidão como oposição à lei de Deus e aos direitos humanos. A Inglaterra, então, impôs medidas restritivas contra a escravidão, a saber:

  1. 1817 = Proibição do comércio de escravos ao norte do Equador;
  2. 1826 = Para reconhecer a independência do Brasil exigiu que este se comprometesse a extinguir aos poucos a escravidão, para o que teria 03 anos. Na prática, nada se fez.
  3. 1831 = A «Lei Feijó» determinou o fim do tráfico e que seriam livres os africanos que chagassem ao Brasil a partir daquela data.
    Ficou só no papel.
  4. 1845 = A «Bill Aberdeen». O Parlamento britânico aprovou uma lei - proposta pelo ministro George Aberdeen - conferindo amplos poderes às autoridades inglesas na repressão ao tráfico de escravos feito em navios brasileiros.
  5. 1850 = Lei «Eusébio de Queiroz» visava estancar de vez o abastecimento de novos escravos. Foi a primeira sentença de morte ao sistema escravagista.

Só a partir de 1860 é que de fato tomou fôlego o movimento abolicionista brasileiro. A legislação oficial emitiu destarte as seguintes leis contra o regime de escravidão negra: 1) 1871 = A «Lei do Ventre Livre», do Visconde do Rio Branco. Pouco benefício trouxe aos cativos; 2) 1885 = A «Lei dos Sexagenários» libertava, como o próprio nome diz, os escravos com mais de sessenta anos de idade, com ressalva que ficassem ainda escravos por mais cinco anos no serviço dos seus senhores para compensar a liberdade.

Essa lei beneficiou mais os senhores do que os escravos; 3) 1888 = Enfim, a «Lei Áurea», de 13 de maio - que decretou oficialmente extinta a escravidão negra no Brasil. Esta não foi uma generosa concessão do governo, nem tampouco um gesto de bondade da Princesa Isabel, que a assinou, mas o resultado da luta dos próprios escravos, unida a fatores de ordem econômica.

Com o intuito de apagar a mancha do passado escravista, Rui Barbosa, sendo Ministro da Fazenda do Governo Provisório da República, mandou queimar os arquivos referentes à escravidão, por uma circular de 13 de maio de 1891. Mas isso não desfez a memória da escravidão no Brasil. Hoje em dia alguns historiadores objetam que a intenção de Rui Barbosa não era essa, mas que ele queria impedir que os ex-senhores de escravos conseguissem que o governo os indenizasse pelas perdas que tiveram com a compra dos escravos agora libertos e para tal era importante não haver documentos. Eis as duas versões deste fato.

A nova realidade, inaugurada em 13 de maio de 1888, não era tão jubilosa. Os escravos foram libertos apenas juridicamente, sem as mínimas condições de vida digna. Assim despedidos, de «mãos vazias», engrossaram o contingente de marginalizados.

Mesmo após mais de um século da «Lei Áurea» o negro continua sendo marginalizado por muitos setores da sociedade, como se fosse gente de segunda categoria. O racismo ainda é muito forte e generalizado. Infelizmente, a escravidão não desapareceu do horizonte.


NOTAS

  1. Cf.: H. C. J. MATTOS, Nossa História: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil, volume I, pp. 121-133.
  2. http://catalogos.bn.br/. Acesso em 21 de maio de 2010.
  3. ASPF - ARQUIVO STORICO DL PROPAGANDA FIDE (Roma), America Meridional - Cod. 1 (1649-1713), pp. 308-311.

HIANSEN VIEIRA FRANCO

O Autor deste articolo es descendiente de ex-escravos africanos. Em Campestre-MG. Laureado hoje en Historia PUG – Roma. (DHIAL)